“As pessoas estão a perder dinheiro de uma forma que não se apercebem”

Apresentou o plano da União de Poupança e dos investimentos «como uma iniciativa-chave para dar maior poder aos cidadãos e às empresas para um futuro mais próspero para o cidadão comum». Como é que este plano pode ser mais do que uma boa ideia?É uma ideia que tenta partir do interesse do cidadão e criar oportunidades para que as pessoas que poupam – e os europeus, no seu conjunto, poupam muito – tenham oportunidades para que essas poupanças sejam aplicadas com um retorno mais elevado, sobretudo quando pensarmos em poupanças de longo prazo, poupanças para a reforma. Ao mesmo tempo, ao canalizar essas poupanças para aplicações de maior retorno no mercado de capitais, estamos a favorecer o financiamento das nossas empresas e, portanto, a ajudar a nossa economia a crescer. Na verdade, é um projeto que traz benefícios para todos os agentes, desde os cidadãos às empresas.
Vamos imaginar que estou a poupar para a reforma e sou um dos 450 milhões de consumidores europeus com poupanças no banco. Nos próximos meses, como posso aderir a este plano e como é que se vai materializar?Vamos emitir uma recomendação aos Estados-membros para que criem uma conta de poupanças e investimentos, através da qual seja disponibilizado um conjunto de opções de investimento simples, de custo baixo e que possam satisfazer os interesses de investimento da maior parte dos cidadãos – que, normalmente, não sabem muito dos mercados financeiros nem precisam de saber. Portanto, nós queremos que estas contas sejam criadas nos Estados-membros, com incentivos fiscais para que as pessoas se sintam mais atraídas por este tipo de investimento e possamos começar a mudar a cultura e a forma como as pessoas veem este tipo de oportunidades. E vamos inspirar-nos naquilo que já são as melhores práticas existentes na Europa e que resultaram muito bem nos países onde foram introduzidas. Vamos também recomendar aos Estados-Membros que trabalhem para a construção do pilar dois e do pilar três das pensões, para que aquilo que são os desafios do envelhecimento possam ser acautelados com tempo e garantir que as gerações atuais e futuras têm níveis de pensão que lhes permitam manter uma vida confortável na reforma.
Mas como consegue convencer consumidores com baixa literacia financeira a tirar dinheiro dos depósitos e aplicar em produtos mais atrativos, mas com risco? E as pessoas, como sabe, têm aversão ao risco. Pode dar alguma garantia de que não vão perder dinheiro?Eu não assumiria, à partida, que as pessoas têm aversão ao risco, na medida em que as pessoas jogam com criptoativos. Nós vamos recomendar aos Estados-Membros que criem estas contas em que os produtos que são oferecidos são obviamente adequados ao perfil do investidor de retalho. Sim, de facto, o investimento no mercado de capitais tem risco. Não tem garantia de capital. Mas quando falamos de investimentos a longo prazo, por exemplo, para a reforma ou para qualquer outro objetivo que se tenha daqui a 20, 30 anos, aquilo que acontece nos mercados de capitais é que nós vemos muitas vezes flutuações. As cotações sobem, as cotações descem. Mas se olharmos no longo prazo, se forem produtos adequados, com o nível adequado de diversificação, a tendência é sempre de valorização no longo prazo. Portanto, os produtos que vão ser oferecidos às pessoas devem ser adequados para o seu perfil de risco adequados ao horizonte de investimento. E depois as pessoas têm de olhar para aquilo como o dinheiro que se poupa e que só se vai buscar no longo prazo se ficar e acompanhar as cotações da bolsa no dia a dia. Não é o tipo de investimento que, se calhar, os vai deixar mais tranquilos, mas não é esse o objectivo. E a verdade é que nós temos exemplos em vários países europeus em que os cidadãos o fazem. Isso melhorou muitíssimo a rentabilidade das suas poupanças, a sua atitude face aos mercados e também o dinamismo das suas economias. É um projecto que beneficia todos.
Também é verdade que, deixando o dinheiro em depósito, neste momento, as pessoas estão a perder dinheiro por causa da inflação…Estão, de uma forma que não se apercebem! Provavelmente porque, se nós pusermos 1.000 € num depósito, no final do período vamos receber esses 1.000 € mais os euros dos juros. A verdade é que, com esses 1.000 €, compramos menos coisas e é isso que nós queremos dizer. Quando se diz que se perde dinheiro nos depósitos não é perder em número de euros, mas aquilo que nós conseguimos comprar com eles. E, portanto, é uma perda. E é um desperdício do esforço de poupança dos europeus.
Como é que este plano pode ser útil também para as empresas e para startups?Na Europa, temos muitos recursos, mas temos um mercado financeiro que é ineficiente, em grande medida, porque está dividido em 27 mercados, quando na verdade nós beneficiaremos de fazer, de construir um verdadeiro mercado único nesta área, em que pudéssemos juntar todos os recursos e ter escala, ser competitivos. As nossas empresas europeias estão normalmente muito dependentes da dívida. E para o crescimento de uma empresa ou para empresas inovadoras que estão a começar, a dívida não é a estrutura mais adequada de financiamento. As empresas precisam de capital, precisam de acionistas e isso é algo que exige a presença deles nos mercados de capitais. E, portanto, o que nós queremos é, por um lado, dar oportunidades a quem poupa de obter esse retorno, mas, ao mesmo tempo, isso permitirá às empresas encontrarem disponibilidade de capital para poderem ter uma estrutura mais saudável e empresas mais saudáveis e mais equilibradas. Crescem mais, são mais competitivas, são mais inovadoras, criam mais e melhores empregos e com melhores empregos beneficiamos outra vez os cidadãos e criamos aqui verdadeiramente um círculo virtuoso.
A propósito de economia saudável, se houvesse uma crise semelhante à de 2008/09, o setor financeiro europeu estaria hoje melhor preparado?O setor bancário em particular, que foi o que foi atingido pela crise de 2008, está claramente melhor preparado. Aliás, nós tivemos um stress test da vida real em 2023, com a falência de um banco nos Estados Unidos, e com o problema do Crédit Suisse na Europa. E a verdade é que os nossos bancos passaram muito bem por essa fase de turbulência, o que mostra que toda a nova regulação financeira, o enquadramento que foi criado na sequência da grande crise de 2008. Funciona e temos um sistema bancário francamente mais robusto. Nós precisamos é de complementar com dinamismo de outros atores do mercado financeiro para lá dos bancos. Porque, mais uma vez, se nós tivermos uma melhor estrutura de financiamento das empresas, isso é bom para as empresas, é bom para os mercados de capitais e é bom para os bancos, porque passam a ter de conceder crédito a empresas que são mais sólidas, como nós.
Mas os bancos têm obtido melhores resultados também porque há uma baixa remuneração dos depósitos e porque têm carregado no valor das comissões. Isso é que é um sistema saudável?A pergunta que me colocou foi como é que nós reagiríamos a uma crise. A questão que me está a colocar é de natureza diferente… Por que é que a remuneração dos depósitos é baixa? Porque, na verdade, os bancos não precisam de captar mais depósitos para intermediar para a economia. Mais uma vez, as empresas têm muita dívida, precisam de capital e, portanto, os bancos não precisam de captar mais recursos para emprestar à economia. Tem mais do que aquilo que é necessário. Porque vou estar a pagar mais por um recurso do qual não necessitam? A intermediação financeira é a função básica e central dos bancos. Mas é preciso que, do outro lado da economia, haja realmente uma procura de crédito que justifique captar mais recursos. Se os bancos não precisam de mais recursos… naturalmente, enquanto empresas que são, não pagam mais por esses recursos.
Defende a liberdade de circulação de capitais na União Europeia, mas ela é compatível com posições protecionistas de alguns governos? Isto lembra-me o caso de Portugal e do ministro das Finanças por causa de uma intenção de um banco espanhol em avançar sobre um banco português. O Governo já fez saber que não está muito confortável com essa ideia. Isso é uma atitude protecionista ou não?A liberdade de circulação de capitais está nos Tratados e depois enfrenta, de facto, dificuldades na prática e pela persistência de barreiras de regimes legais e legais diferentes, regimes de insolvência distintos, atitudes diferentes da parte dos supervisores, enfim, as barreiras são múltiplas e faz parte do projecto da união, da poupança e dos investimentos trabalhar para retirar essas barreiras. As atitudes protecionistas são muito focadas naquilo que é uma perspectiva nacional. Eu tenho vindo a dizer que nós temos de mudar a forma de pensar e temos que perceber que doméstico é ser europeu. Não é necessariamente dentro das fronteiras dos países. A Comissão, como sabe, nunca comenta casos particulares. Naquilo que diz respeito à questão da banca, nós temos em vigor uma união bancária que envolve já todos os países da área do euro e na qual estão definidas as regras que devem ser seguidas para que haja fusões e aquisições de instituições bancárias. E, portanto, essas regras são definidas no âmbito da União Bancária. São o Banco Central Europeu, o supervisor relevante e as autoridades da concorrência que têm de se pronunciar sobre qualquer operação em concreto. E não há mais poder previsto para ninguém relativamente a essa matéria.
Defende a importância estratégica da consolidação. Isso é porque precisamos ter mais músculo e maior capacidade para enfrentar, por exemplo, a concorrência do mercado norte americano?Se nós pensarmos como continente, nós temos que pensar qual é a dimensão relevante de uma empresa qualquer, um banco ou outra empresa. Para nós percebermos qual é a dimensão adequada, temos que pensar qual é o nível de concorrência que estamos a enfrentar, qual é que é o mercado relevante. E eu vejo a Europa como competindo no seu conjunto relativamente a outros blocos internacionais. Para competirmos com os Estados Unidos, com a China, com os grandes blocos internacionais, nós precisamos do músculo que representa a Europa no seu conjunto, a União no seu conjunto, e não cada um dos Estados-Membros per si. Porque nenhum de nós é suficientemente grande, mesmo os maiores, o suficientemente poderoso para fazer face a esse nível de concorrência. Nesse sentido, precisamos de empresas e bancos também que sejam capazes de competir nesse espaço, que sejam capazes de competir com as grandes instituições financeiras globais para oferecer melhores serviços, mais serviços a preços mais competitivos e ser capazes de servir melhor aqueles que são os interesses da economia europeia. Precisamos de campeões europeus. Eu não gosto especialmente da designação, mas estamos a falar de empresas ou bancos que sejam capazes de concorrer nesse patamar e nessa dimensão – e para isso precisam de escala, de facto.
A Comissão e o Conselho avançam com um financiamento de 150 mil milhões de euros para a área de defesa e segurança. Olhando não apenas para a sua experiência atual como comissária, mas também como antiga ministra das Finanças em Portugal, como é que sustenta este esforço de maior investimento na área da defesa, sem uma derrapagem orçamental e também da dívida pública?O orçamento é sempre feito de escolhas e em cada momento, dependendo da evolução das circunstâncias, nós vamos definindo novas prioridades. Temos de ser capazes de encontrar formas de gerir e de considerar a existência de restrições orçamentais, porque elas existem. E não é só uma questão de imposição, é uma questão factual e temos de pensar como equilibrar essas prioridades. Mas eu também acredito que o investimento no setor da defesa é um investimento reprodutivo. Portanto, se nós conseguirmos, ao mesmo tempo que satisfazemos a necessidade de garantir a nossa própria defesa e segurança, que esses investimentos podem responder ao desafio da reindustrialização da Europa e ao desafio da criação de mais empregos qualificados e de melhorar a capacidade de criação de riqueza… É muito importante aqui anotar que este esforço tem de ser conjunto. Isto funciona se nós, de facto, acordarmos, a forma como vamos fazer esses investimentos e também a defesa. É importante lembrar às pessoas que investir em defesa e segurança, não estamos a falar apenas de armas e munições. Nós estamos a falar do reforço de infraestruturas críticas, inteligência artificial, cibersegurança, novas tecnologias de inovação que têm um potencial de nos ajudar a criar mais riqueza para o futuro. E acho também que serão excelentes oportunidades de investimento para aqueles que queiram investir a mais longo prazo nas empresas. E apesar de haver um desafio nas escolhas e nas prioridades, eu acho que a prazo (e não será muito longo) será uma aposta ganha também do ponto de vista económico dentro da Europa.
Vivemos uma data simbólica: a 12 de Junho de 1985, Portugal e Espanha assinaram o Tratado de adesão à então CEE ou à União Europeia. Claro que houve fundos comunitários e aspetos positivos e aspectos que ainda falta cumprir. Mas será que é tempo de os portugueses – e os povos de outros países – se prepararem para uma redução dos fundos? Ou, desculpe a expressão, é inevitável o desmame?Eu lembro-me desse dia 12 de Junho de 1985. Tinha acabado de chegar à maioridade e, portanto, é um dia que está marcado também na minha memória pessoal e não só na memória colectiva. Hoje é um dia muito importante. A União Europeia constitui para Portugal um passo extraordinário em todas as dimensões na consolidação da democracia, na forma como nós nos integramos no espaço europeu, naquilo que foi ao mesmo tempo benefício para Portugal por pertencer à União e o benefício para a União, por passar a ter Portugal entre os seus membros. É um projeto muito positivo e reconhecido como tal. A questão que me coloca dos fundos, na verdade, é um pouco semelhante à resposta que lhe dei antes. Nós temos de perceber quais são as prioridades, onde é que temos as prioridades para fazer a afectação dos recursos que são sempre escassos por definição. E também perceber que, por exemplo, os fundos destinados à convergência têm a ver com a distância que cada um de nós está da média. À medida que entram novos países que vêm de patamares mais baixos, essa média desloca-se e a nossa posição relativa também. Mas, de facto, todos os países que recebem esses apoios retribuem com a sua capacidade de desenvolvimento e de crescimento. E eu diria que a ambição de qualquer país deve ser deixar de ser um beneficiário líquido e passar a ser um contribuinte líquido. Porque o que isso significa, na verdade, é que somos mais ricos e, julgo eu, aquilo que todos nós queremos e aquilo que a Europa nos tem ajudado a construir.
Jornal Sol